Violados! Direitos humanos em quadrinhos
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Data
2021-02
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Editor
Cegraf UFG
Resumo
Descrição
Foi Sigmund Freud quem disse certa feita, e eu mais do
que concordo com ele, que a única coisa certa na comuni-
cação humana é o mal entendido. O que você quis dizer não
é exatamente o que o outro entendeu, e não é raro testemu-
nhar discussões em que as pessoas defendem as mesmas coi-
sas, mas se desentendem graças ao ruído comunicante. Um
mesmo tratamento – “querido”, por exemplo – pode ser ca-
rinhoso ou passivo-agressivo, a depender do tom de voz uti-
lizado. E nem sempre é fácil saber o tom de voz do outro, em
tempos de comunicação digital e textos postos na internet.
Se a tendência humana é o mal entendido e a compreensão
mútua é um esforço eterno que demanda labuta, os tempos
atuais dimensionam isso de uma forma ainda mais inten-
sa. Estamos o tempo todo sendo instados a escrever o que
pensamos em redes sociais. Choques culturais ocorrem en-
tre falantes de uma mesma língua. Lembro como, em 1996,
acessando a internet pela primeira vez, vivenciei alguns mal
entendidos por conta da expressão “bah!”. Em Salvador, era
uma interjeição que significava apenas desprezo. Em Porto
Alegre, “bah!” podia significar tanto desprezo quanto admi-
ração, a depender do contexto. Isso significa que, após um
“bah!”, eu necessariamente precisava que a pessoa explicas-
se o que queria dizer com aquilo.
Eu precisava que ela desenhasse.
Vou insistir um pouco mais no problema do ruído na
comunicação falada e escrita, abordando outro ponto: as ex-
pressões idiomáticas. Eu acabei de usar uma de propósito,
dada a sua importância para o ponto que quero defender. Eu
disse que, às vezes, preciso que a pessoa “desenhe pra mim”
o que ela está querendo expressar. Porque nem sempre pala-
vras são suficientes. Palavras são dúbias, ambíguas, e é pre-
ciso mais do que apenas a palavra para saber se quando al-
guém me chama de “querido”, está sendo carinhoso de fato,
ou irônico. Expressões idiomáticas tendem a não ser univer-
sais, pois fazem sentido apenas para um povo, e não para os
outros. Tomemos, por exemplo, a expressão em português
“eu me viro”. Em italiano, ela não faz sentido algum, pois em
italiano a pessoa não “se vira”, ela “se cava”. Tomemos outra
expressão: “segurar vela”, que no Brasil utilizamos como re-
ferência a alguém que, sem ter muito o que fazer, está acom-
panhando um casal e estragando o clima romântico. Se você
tentar traduzir literalmente essa expressão para o inglês, ela
não fará sentido, pois em inglês se diz “ser a terceira roda”.
Ainda em inglês, ninguém “puxa saco” do outro, as pessoas
“pulem maçãs” ou têm o nariz marrom (“brown-noser”) de
tanto ficar cheirando o rabo alheio. Expressões idiomáticas
são a cereja do bolo nos processos de ruído comunicante.
Uma exceção parece ser uma expressão que nós brasi-
leiros gostamos muito, e que eu usei acima: “quer que eu de-
senhe?”. No Brasil, é bastante comum que, em uma discus-
são acalorada, uma das partes que acabou de explicar algo
importante pergunte, em estilo jocoso: “entendeu, ou quer
que eu desenhe?”. Há também a versão elogiosa da expres-
são, que acontece quando alguém deseja concordar com o
que foi escrito, e diz “melhor que isso, só desenhando”. E há
a versão humilde, quando alguém admite que não está en-
tendendo algo, e pede “não estou entendendo, desenhe pra
mim”. Em inglês, é comum ouvir “quer que eu soletre, pra
você entender?”, mas há também a expressão “quer que eu
desenhe?”. Em italiano, é exatamente igual: “quer que eu de-
senhe pra você?”. Em espanhol, a versão que eu mais escuto
é “quer que eu te explique com maçãs?”, mas já ouvi amigos
argentinos e espanhóis usando expressão idêntica à nossa.
Não estou aqui apostando no improvável fato de que “quer
que eu desenhe?” seja uma expressão universal. São muitos
os povos e culturas, e eu não ficaria surpreso se em algum
lugar a expressão equivalente seja “quer que eu te faça um
bolo?”. Tudo é possível.
O que me chama a atenção é que essa expressão que
evoca a necessidade de desenhos para o melhor entendi-
mento faz todo sentido. O desenho é uma linguagem quase
universal, considerando que a maioria das pessoas é visu-
almente orientada. Aristóteles diz, em sua Metafísica, que
nós humanos somos principalmente orientados pelo sentido
da visão e, a não ser que a pessoa tenha deficiência visual
grave, isso é bem verdade. Desenhar foi a forma encontrada
por nossos ancestrais remotos para registrar fatos da época.
Histórias de caça, de amor, de rivalidades. Seja você brasi-
leiro, russo ou chinês, entenderá os desenhos. Não raro, psi-
cólogos especializados em infância usam o desenho como
recurso para entender como crianças estão se sentindo. Só
que nós, adultos, mesmo não vivendo em cavernas primi-
tivas, mesmo tendo dominado o poder do fogo e desenvol-
vido tecnologias espantosas, ainda assim precisamos, sem
dúvida, que se desenhe.
Veja o caso dos direitos humanos. Poucas coisas foram
mais distorcidas no Brasil do que esse conceito. Não raro, en-
contraremos pessoas que confundem as eventuais fragilida-
des do sistema penal como sendo um problema causado pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos. É claro, não
leram a Declaração. Ou, em alguns casos, até a leram, mas
acham que “direitos humanos valem para humanos direitos”,
o que constitui sofisma de baixa qualidade. Uma pessoa que
comete crimes, por exemplo, não deixa de ser humana, por
mais graves que tenham sido seus erros. Dizer que ela é “um
animal” é terrivelmente injusto com os animais irracionais,
pois há feitos horríveis que só a nossa espécie é capaz de rea-
lizar. Alegar que a pessoa é “um monstro” é só uma forma de
dizer que a nossa espécie, a humana, é maravilhosa e que,
portanto, se alguém comete uma barbaridade, só pode ser
monstro. Só que as monstruosidades, gostemos disso ou não,
são humanas, e é preciso reconhecer isso.
Mesmo no caso de países que adotam a pena de morte,
muitos deles defendem os direitos humanos. A pessoa con-
denada à morte passa pelo devido processo legal, não pode
ser torturada, deve ser tratada com dignidade, independen-
temente do que tenha feito. Defender os direitos humanos
dela é defender a nossa própria humanidade, caso contrário
iremos sucumbir a instintos terríveis e, por ódio, cometere-
mos contra ela uma série de atos tão criminosos quanto os
que ela cometeu – talvez até piores!
Eu tinha por volta de cinco anos de idade quando vi-
sitei um de meus tios na prisão. O ano era 1976, e ele havia
sido preso porque tinha amigos que militavam pelo Partido
Comunista. Também fazia poesias que foram consideradas
subversivas. Este meu tio foi torturado pessoalmente por
Brilhante Ustra e, anos após sair da prisão graças à ação da
advogada Romilda Noblat, faleceu por contra de coágulos
cerebrais que, posso apostar, foram o resultado das pan-
cadas na cabeça que levou. Muitas vezes, explicar sobre a
importância dos direitos humanos não adianta nada, pois
os vieses cognitivos do interlocutor são tão poderosos que
impedem o claro entendimento. Agora imagine essas cenas
que descrevi sobre meu tio, desenhadas. É raro encontrar
alguém que, diante de uma imagem como a que descrevi,
não se revolte. Ver uma pessoa ser torturada porque escre-
veu poesias causa indignação até em quem não compartilha
do mesmo ideário político.
Sim, a gente precisa que algumas coisas sejam desenha-
das, porque só assim a gente entende. O que você verá nas
próximas páginas são histórias como a que aqui relatei, de
meu tio. Histórias de pessoas submetidas à tortura, a condi-
ções absurdas de trabalho. Histórias de pessoas que clamam
por justiça e que precisam apelar a instâncias internacio-
nais. Histórias que exaltam a importância da Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
E se pra você as palavras não bastam, não se preocupe:
está tudo desenhado. Um dos problemas mais recorrentes
da Academia é que, não raro, nós doutores e mestres escre-
vemos de formas inalcançáveis para a maioria das pessoas.
Em nossas torres de marfim altamente intelectualizadas,
passamos a falar apenas com quem domina o nosso mesmo
vocabulário elitista. Por essas e outras que digo que há, mui-
tas vezes, mais poder em uma página de história em quadri-
nhos do que em um livro inteiro.
Alexey Dodsworth, PhD e roteirista de
histórias em quadrinhos
Fevereiro de 2021.
Palavras-chave
Histórias em quadrinhos, Direitos humanos, Desenho, Comunicação
Citação
FERREIRA, Fernanda Busanello (org.) et al. Violados! Direitos humanos em quadrinhos. 2. ed. Goiânia: Cegraf UFG, 2021. E-book. v. 1, il. ISBN: 978-65-89504-59-7. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/handle/ri/19556. Acesso em: 08 jun. de 2021.